A ignorância, de Milan Kundera | resenha

A ignorância é um livro que tem o exílio como tema principal; e, por causa do exílio, a memória e a nostalgia. Protagonizado por Josef e Irena, o livro passeia por vários caminhos que convergem sempre para a sensação de despertencimento. Um narrador impessoal acompanha o sentimento de não pertencer a lugar nenhum desses dois personagens que saíram da Tchéquia para vier em diferentes lugares da Europa.
Kundera ele próprio foi um exilado. A ignorância, inclusive, é da fase da literatura do escritor em que ele deixou de escrever no tcheco do país natal para publicar em francês. Essa nuance da língua da obra ser a língua do país do exílio não deixa de ser significativa.
Os protagonistas do romance deixaram a República Tcheca por causa da dominação da União Soviética no contexto da Guerra Fria e desde então perderam a ligação com o país de origem e com os familiares. Quer dizer, perderam a ligação com o lugar onde viveram a juventude e formaram as primeiras lembranças da vida. Depois de décadas, decidem retornar para ao país natal. De início, eles já não pertencem ao país do exílio; com o passar do tempo, deixam também de pertencer ao lugar de onde saíram.
É disso que vem as deformações da memória, o despertencimento, a nostalgia.
Desenraizados, os personagens se encontram numa série de limitações. Primeiro, no país do exílio, condicionados pela etiqueta que se exige de um exilado – a forma de se comportar, as queixas, as opiniões sobre política que devem ser uniformes. Depois, de volta ao país natal, se sentem limitados pelas lembranças que os familiares e amigos têm deles.
Os livros do Kundera tem algumas características marcantes. Uma delas é a da mistura do romance com o ensaio. Em A ignorância os capítulos ensaísticos mais interessantes são os ensaios sobre o retorno.
Um dos sentimentos de Josef em particular em relação ao exílio é a sensação de que quanto maior o tempo que se deixou para trás mais irresistível é a voz que convida ao retorno. Nos ensaios, um dos questionamentos é o de que se esse retorno seria possível. Esse questionamento se baseia no fato das transformações: tanto a cidade que Josef e Irena deixaram se transformaram; eles dois também.
No meio dessas transformações, os personagens mostram preocupações. Uma delas em relação à memória: quando as recordações não são evocadas, são esquecidas. No exílio, essas memórias são deformadas e se transformam em nostalgia. A relação com essas memórias deformadas deixa os protagonistas do romance enfermos.
Nas palavras de Kundera: “o doente sofre da deformação masoquista da memória”.
Quando voltam para o país natal, as próprias memórias limitam. Não há o que ver no país da juventude senão o próprio passado – algo do gênero é afirmado enquanto os personagens tentam não pensar no próprio passado. E, de fato, eles não conseguem se libertar dele.
Mais para o final do livro, são várias as menções à necessidade dos dois de serem compreendidos por alguém. E para os dois poder reconstruir essas narrativas é essencial para a construção da própria personalidade.
Porque é a partir do discurso que se forma a identidade dos dois. E esse discurso tem que vir da relação com o outro. Da demanda da identidade surge um erotismo muito próprio que por vezes parece ser o único atenuante (ainda que passageiro) para o despertencimento.
No fim, A ignorância livro é um capítulo interessantíssimo da literatura sobre o exílio que se construiu no século XX. Isso sobretudo pela relação dos personagens com as próprias memórias e com o desejo do retorno. É muito expressivo o romance de Kundera.