O drible, de Sérgio Rodrigues | Resenha

O drible, de Sérgio Rodrigues, é um romance que traz o futebol para o centro de uma literatura memorialista. O tal drible do título faz menção ao drible sem tocar na bola que Pelé fez na copa de 70. Depois de fazer o drible, Pelé não conseguiu fazer o gol. Nas palavras do narrador do livro, Pelé desafiou Deus e quase venceu.
Esse episódio é importante na narrativa por dois motivos. Primeiro, porque aconteceu no mesmo dia do suicídio da esposa de Murilo Filho e da morte de Murilo Neto. Segundo, porque a narração dele é só o primeiro dos episódios dos solilóquios de Murilo Filho sobre o futebol; solilóquios que são marcas tanto do elo quanto dos afastamentos dos dois.
Os dois têm cisões que não são contornáveis pelas memórias relacionadas ao futebol. Ao mesmo tempo, o futebol é o único elo dos dois para além do laço sanguíneo. Aliás, tendo em vista que Murilo Filho questiona se de fato é pai de Murilo Neto, as memórias relacionadas ao futebol são os únicos fios substanciais que unem os dois.
Do ponto de vista de Murilo Neto, apesar de ter o futebol como profissão, todo o envolvimento do pai com o esporte parece um tipo de herança maldita. Ele se recusa a usar o nome da família paterna ao entrar para o jornalismo. Mais ainda, o personagem parece sempre rejeitar que qualquer memória positiva que tenha do pai se mantenha.
Do ponto de vista de Murilo Filho, os solilóquios parecem ser um dos jeitos que ele encontrou para se afastar do mundo e de evitar o diálogo com qualquer outra pessoa. Afetado pelo suicídio da esposa e ressentido por pensar que pode ter sido traído enquanto ela estava viva (resultado de sua insegurança), existe também o ódio direcionado a Murilo Neto e, de certo modo, a si próprio. A Murilo Neto porque o considera fraco, fracassado; a si mesmo, porque já não tem nem a influência que tinha quando era um dos nomes mais célebres da mídia esportiva brasileira nem condições de saúde para sequer viver de forma independente – dá pra subtender que Murilo Filho também se considera fracassado na velhice.
Aí é que a vivência dos dois relacionadas ao futebol ganham importância: apesar de todo o ressentimento, o esporte é o único elo entre os dois. Nos fragmentos de recordação que os dois carregam, tem inúmeras anedotas que tocam em nomes célebres do futebol e de medalhões jornalismo esportivo brasileiro; sobre ídolos da seleção brasileira como Didi e Vavá, sobre Nelson Rodrigues. Mas entre essas lembranças, a mais destacada é a de Peralvo.
Peralvo, na narrativa, é o maior craque entre todos os que já nasceram no Brasil. Em um episódio carregado do que o melhor realismo maravilhoso pode criar, a gente acompanha a trajetória de Peravaldo desde o alçamento como grande promessa até o fim da carreira com pouquíssimos jogos como profissional. Símbolo do que poderia ter sido e não foi, a aparição desse jogador na trama é o que melhor exemplifica como Sérgio Rodrigues capturou o imaginário brasileiro relacionado ao futebol.
Porque, claro, para além das anedotas de de Peralvo, existe muito também da relação do futebol com a realidade social do Brasil sobretudo dos anos 50 aos anos 70. Mais importante do que esses episódios contingenciais, é o jeito que o futebol está intimamente relacionado com a identidade do país. E o autor consegue capturar esse imaginário.
Enfim, O drible é uma leitura mais do que recomendada. Não só para quem gosta de futebol. Mas para qualquer leitor que entenda que o futebol é incontornável quando se discute sobre o que é o Brasil e sobre como as pessoas se relacionam no país. Mais ainda, para qualquer pessoa que gosta de bons livros, de boas histórias.
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Indico este ensaio sobre o livro, que trata da relação de O drible com a memória.