Livro das mil e uma noites | Resenha

Jorge Luis Borges disse numa conferência que o Livro das mil e uma noites é parte prévia da nossa memória. E é verdade: todo mundo já ouviu falar em Šahrāzād, todo mundo já assistiu alguma adaptação ou leu algum livro que tem ligação muito próxima com as Noites, todo mundo conhece algo sobre o livro. Mas essa constatação de Borges vai além disso. As Noites nos antecedem porque o livro foi concebido com histórias que já faziam parte de um imaginário comum e que foram porque nas Noites contá-las ou conhecê-las significa sobreviver. Acredito que a leitura do livro faz qualquer leitor encontrar (ou reencontrar) o desejo de ouvir histórias, de compreender o mundo por meio da imaginação. Minha proposta com as resenhas das Noites aqui no blog é compartilhar as reflexões que eu fiz durante a leitura.

Quero enfatizar isto: minha proposta com as resenhas é compartilhar o que eu absorvi do livro; de certa forma, o que eu entendi das histórias que eu li. Não sou especialista em literatura árabe. Sequer falo árabe para ler o livro no idioma original. Sou um leitor mais das Noites. Quero apenas compartilhar minha leitura; claro que consciente da responsabilidade que falar de literatura exige.

O livro aqui no blog vai ter cinco resenhas, uma para cada volume da tradução do Mamede Mustafa Jarouche. Publicados pela Biblioteca Azul de 2004 até 2021, são as primeiras traduções brasileiras do livro feitas integralmente do árabe. As edições das Noites têm diversas traduções que possuem muitas discrepâncias umas das outras. Escolhi a do Mustafa Jarouche tanto por ser direto do árabe (e não traduções de traduções como algumas outras) quanto pela escolha de traduzir os manuscritos sem censuras ou mudanças arbitrárias.

Cada resenha vai ter um ou dois fios condutores, temas centrais do livro que eu gostaria de discutir. Esses fios condutores são elementos centrais para conduzir uma discussão. Às vezes temas pertinentes para um dos volumes só vai ser tratado em outro volume, às vezes histórias contadas em um dos volumes vão invadir a resenha de outro volume; às vezes temas que poderiam ser discutidos na resenha de tal volume só vá ser discutido na resenha de outro volume. É inevitável que seja assim, porque no fundo o livro é uma coisa só. O fio condutor desta resenha é a narrativa como forma de sobrevivência, discuto também sobre como as Noites são virtualmente infinitas.

Além dessa discussão principal de cada resenha, em cada texto eu vou trazer uma obra para trazer paralelos com as Noites também. Desde que eu comecei a ler as Noites, todas as minhas leituras giram ao redor do livro. No final deste texto, trago uma associação com o conto O livro de areia, de Borges; junto com comentários sobre a conferência do autor argentino sobre as Noites. Antes disso, cabe comentar como as Noites foram compostas.

história da composição do livro

O Livro das mil e uma noites não tem a característica de ser uma obra pronta e acabada que em dado momento atingiu um dado momento atingiu um estado final e sedimentado. O livro passou por diversos processos de escrita e reescrita ao longo dos séculos. De histórias que tanto podiam ser reescritas quanto podiam ser suprimidas e adicionadas outras. Isso resultou num livro que não é uma obra acabada e sedimentada, fechadas. São muitas as versões possíveis das Noites.

No século IV, no Irã, existia um livro chamado mil fábulas. Um historiador classificou esse livro como histórias para se entreter durante a noite. Esse livro foi traduzido para o árabe como mil noites; contava a história de um rei que matava mulheres até chegar uma mulher que contou histórias até esse rei se curar. Apesar dessa informação lembrar as Noites em linhas gerais, acredita-se que não exista influência persa pelo menos nas histórias que Šahrāzād conta. Mas existe pouca documentação sobre isso.

É por volta do século XIII que surge um livro que se chamava Mil e uma noites. Existiam vários manuscritos e configurações diferentes deles, com histórias diferentes em cada um. O que eles têm em comum é o prólogo moldura. Com o tempo, estabeleceu-se um conjunto de histórias e de configuração mais ou menos estável do texto na região onde hoje fica a Síria. Convencionou-se chamar esse conjunto de ramo sírio das Noites (e é dele que vêm as histórias desse primeiro volume da tradução do Mustafa Jarouche). Existe também o ramo egípcio, que é posterior e que contém o ramo sírio.

Na região onde hoje fica o Egito, o texto era visto como fruto da adição de histórias e não tinha um autor legítimo; o copista podia então adicionar histórias, até porque o livro não tinha mil e uma noites. Todos os manuscritos sírios tinham 282 noites e pretendia-se que se completassem essas mil e uma noites. As histórias que eram adicionadas vinham de outros manuscritos, a única coisa que eles tinham em comum era algum suspense no final de cada noite. Como cada copista tinha um critério para adicionar ou suprimir histórias, existem diversos manuscritos egípcios com histórias diferentes em cada um deles. E como eram manuscritos, também existe diferenças de cópia de uma mesma história em manuscritos diferentes.

Como saber então se uma história pertence às Noites? O tradutor Mamede Mustafa Jarouche responde que basta se encaixar na narrativa de Šahrāzād. Não é um mero formalismo a divisão do livro em noites, tampouco que em todas as noites exista todo um ritual para que Šahrāzād comece a contar as histórias. Esses são fatores essenciais para as Noites existirem enquanto livro.

É no chamado prólogo-moldura que o leitor conhece Šahrāzād e toma conhecimento do motivo para ela contar as histórias todas as noites para o rei Šāhriyār.

prólogo-moldura

Num reino distante, dois reis governavam, os irmãos Šāhriyār e Šāzazān. O irmão mais novo, Šāzazān, descobre que está sendo traído pela esposa e passa a se considerar amaldiçoado pelo destino. Vai então visitar o irmão mais velho. Chegando lá, descobre que Šāhriyār também estava sendo traído. Pior ainda, descobre que a esposa do irmão mais velho participa de orgias com escravos e com outras mulheres. Conta isso a Šāhriyār. O irmão mais velho também passa a se considerar amaldiçoado pelo destino.

Os dois então decidem passar um ano viajando juntos pelo mundo. Em determinado ponto da viagem, eles encontram uma mulher que foi sequestrada por um gênio. Essa mulher conta aos dois que, como forma de vingança por ter sido sequestrada pelo gênio, trai ele com outros homens quando ele está dormindo. E que vai traí-lo com os dois. Os dois irmãos tentam resistir, mas ela ameaça-os de inventar qualquer mentira para que o gênio matasse os dois.

Os dois são sexualmente abusados pela mulher. Voltando para casa, Šāhriyār chega na conclusão que nenhuma mulher merece confiança nem estima. Decide que vai casar com as mulheres do reino, desposá-las e mandar que alguém as mate em sequência.

Existem alguns pontos para comentar sobre essa primeira parte do prólogo-moldura. A que me chama atenção é todo o exagero nos problemas que esses personagens passam. O irmão mais novo se decepcionar por uma traição é o último ponto de razoabilidade que existe no livro inteiro. As orgias que a esposa de Šāhriyār são desmedidamente escandalosas. O acaso do abuso sexual também é perturbador. Por fim, a conclusão em que chega Šāhriyār de decidir matar todas as mulheres é de uma loucura que supera qualquer outra decisão que ele pudesse tomar; não existiria ação mais desproporcional do que essa.

Tem mais um ponto que eu considero importante. É que o irmão mais novo encontra alívio no sofrimento de Šāhriyār. Ele se sente menos amaldiçoado quando percebe que as injustiças que o irmão sofre são mais graves. Isso e relevante porque é basicamente o que vai acontecer ao longo de todas as histórias das noites. Os personagens, depois de acreditarem que estão sendo injustiçados pelo destino, esquecem os próprios sofrimentos ouvindo sofrimentos piores dos outros.

Šāhriyār leva a cabo o plano de casar com as mulheres para depois matá-las. Até que a filha de um dos vizires (tipo de conselheiro próximo do rei) decide tentar parar com essa matança. Descrita como uma mulher culta e inteligente, Šahrāzād pede para que o pai a ofereça para um casamento com o rei.

O plano de Šahrāzād é o de contar histórias para o rei todas as noites, para que ele esqueça de matá-la. Ela pede ajuda da irmã mais nova. Todas as noites, ela contaria uma história e a interromperia num momento de suspense. Todas as noites, a irmã mais nova dela, Dīnāzād, pediria para que Šahrāzād continuasse a história. É isso que Šahrāzād planeja e executa, contrariando o conselho do pai de não se arriscar.

A figura de Šahrāzād é definidora das Noites, como o tradutor do livro havia dito. É ela quem narra as histórias das Noites ou, pelo menos, é ela quem narra que outra pessoa está narrando algo. Todas as histórias dependem dela.

Não dá para entender o livro sem passar por uma reflexão sobre Šahrāzād. Entendo que existem alguns pontos importantes sobre ela enquanto personagem. O primeiro, evidentemente, é que Šahrāzād é uma mulher que narra histórias para que a vida de outras mulheres seja preservada. Existem algumas nuances para esse comportamento. O que eu considero mais impressionante é que Šahrāzād toma essa decisão por iniciativa própria. Faz sentido pensar que eventualmente ela seria escolhida para ser desposada pelo rei. Mas é ela quem decide o momento de casar com o rei, consciente do risco de ser assassinada. Não é exagero a visão de que Šahrāzād é uma heroína que se dispõe a fazer um sacrifício.

Outra pontuação sobre Šahrāzād é a capacidade dela em contar e conhecer as histórias. Mais do que heroína, Šahrāzād demonstra uma inteligência que eu não consigo encontrar paralelo na literatura. E Šahrāzād é leitora. É dito que ela “tinha lido livros e compilações de sabedoria e de medicina; decorara poemas e consultara as crônicas históricas; conhecia tanto os dizeres de toda a gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e entendido”. Šahrāzād é leitora; e é uma leitora que não enlouqueceu com os livros, nem se desprendeu da própria realidade por causa da literatura. Ao contrário: é ela articular as leituras que fez para salvar mulheres de serem assassinadas.

Um último ponto que eu quero ressaltar é que dentro das histórias de Šahrāzād as narrativas muitas vezes têm um objetivo prático muito bem definido também. Ela conta histórias para continuar viva e evitar que a matança continue; muitos dos personagens dela fazem o mesmo. Boa parte das histórias que ela conta vão refletir esse objetivo.

a narrativa é definidora da vida e da morte

O tipo de evento mais comum nas Noites é o de um personagem que precisa contar uma história para continuar vivo. É esse o caso em todos os ciclos de histórias das 170 noites do primeiro volume do livro. De certa forma, as narrativas que Šahrāzād conta espelham o conflito que ela vive. Muitos dos personagens das Noites estão ameaçados de morte, muitos deles sofrem injustiças, muitos deles tomam atitudes desmedidas por causa de traição e ciúme.

Vale destacar logo de início que ela recusa o conselho do pai de não se oferecer para se casar com o rei. O pai conta para ela a história de um homem que não media as consequências das próprias ações. Ela escuta a história e recusa o conselho. Quando pede ajuda para irmã, Šahrāzād deixa explícita a intenção em se oferecer para o rei: “eu contarei a vocês histórias que serão o motivo da minha salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de abandonar o costume de matar as mulheres”.

Quando introduzi Šahrāzād como personagem, eu mencionei como era importante o fato dela ser uma leitora para conhecer todas as histórias que ela conhece. Agora eu destaco o discernimento dela por saber que contar uma história não vale nada por si só. Digo: contar ou conhecer uma história não é necessariamente bom nem necessariamente ruim. O destino de centenas ou de milhares de mulheres é salvo por conta dela; e isso é muito significativo para as Noites. Mas seria danoso esquecer que nada disso teria acontecido se Šahrāzād tivesse seguido o conselho do pai. E que o pai contou a história com a intenção de poupar a vida da filha, assim como muitos personagens das noites contam histórias para salvar a eles mesmos ou a entes queridos.

O primeiro ciclo do Livro das mil e uma noites gira em torno de um personagem que precisa da ajuda dos outros para não sofrer a injustiça de ser assassinado sem nada ter feito de mal. Um próspero mercador comia tâmaras enquanto viajava, jogando os caroços no caminho. Em certo ponto, ele é interrompido por um irift, criatura mágica muito mais forte que os homens. Esse irifit é categórico em dizer que vai matar o mercador porque esse mercador matou o filho quando jogou um dos caroços; nenhuma lamentação que o mercador faz demove o irift.

Mas mercador pede um ano de clemência para que possa se despedir de sua família e o irift concede. Depois que esse ano passa, o mercador vai ao encontro do irift para ser assassinado. Mas conta a história dele para três xeiques que estavam viajando. Os três xeiques se apiedam. E então os três xeiques contam cada um uma história deles para o irift; e o irift, depois de ouvir a história, perdoa o mercador.

Não é difícil perceber como essa história se aproxima de Šahrāzād. O mercador está condenado à uma morte por causa de uma injustiça, promovida por alguém que tem mais poder que ele. Encontra a salvação nas histórias.

Mas o episódio é marcado por diferenças e alguns paralelismos também. O rei Šāhriyār decide matar todas as mulheres porque foi traído e abusado; Šahrāzād poderia eventualmente ser assassinada, mas a ameaça não era urgente para a pessoa dela, é ela quem se voluntaria para salvar que outras mulheres sejam escolhidas. A ameaça ao mercador é individual: é ele quem precisa ser assassinado porque ele matou por engano o filho do irifit. Vale comentar que a relação de poder entre os dois pares é diferente também. Šāhriyār tem mais força e poder do que Šahrāzād porque é homem e porque é rei. O irifit tem mais poder do que o mercador porque é um ser que tem força sobre-humana, mágica.

As ferramentas para que quem está ameaçado sobreviva são diferentes também. Šahrāzād leu e é articulada e inteligente o suficiente para contar inúmeras histórias para que possa retardar a própria morte. O mercador depende das histórias espantosas dos xeiques. A forma com que cada opressor lida com a história é diametralmente oposta por sua vez. O rei vai sendo enganado todas as noites; por vezes existem sinalizações que no final de uma ou outra história pretende matar Šahrāzād como todas as outras mulheres. O irifit afirma que vai poupar a vida do mercador caso as histórias dos xeiques sejam espantosas o suficiente.

A próxima história desse primeiro volume também é um espelho distorcido do prólogo moldura, de Šahrāzād contando histórias para o rei Šāhriyār. Se trata a história de um pescador que encontra um baú no fundo de um rio. O irifit revela que estava preso há milhares de anos e diz que, mesmo que o pescador tenha salvado ele, ele iria matá-lo. O pescador encontra uma forma de enganá-lo e de enviá-lo de volta para o baú. Ele então conta uma história para o irift.

Basicamente, o pescador conta a história de um rei que morreu por ser enganado e não ter tido piedade com um sábio. Essa história inicia contando sobre o caso de um rei que tinha lepra um sábio conseguiu recomendar um remédio para curá-lo. Entretanto, o rei é aconselhado por um vizir a assassinar o sábio, porque, segundo o vizir, se o sábio pode curá-lo depois com certeza pode prejudicá-lo; visivelmente por inveja, ainda que o pescador como narrador deixe isso implícito.

O rei então decide matar o sábio. Mas… quer escutar uma história do sábio. E o sábio se recusa a contar por estar ameaçado de morte. O sábio diz ao rei sobre um livro que continha um segredo. Curioso para saber o segredo desse livro, o rei vai buscá-lo e folheia as primeiras páginas; como o sábio disse. No fim, o rei morre: as páginas do livro estavam envenenadas.

Dessa vez, são pocas as semelhanças com a história de Šahrāzād. Mas muitos paralelos são possíveis. A mais gritante para mim é como o rei não age com bom discernimento em momento algum, assim como Šāhriyār. E os dois são enganados. Enquanto o rei é influenciado pelo vizir a matar o sábio, Šāhriyār vai sendo levado a adiar o assassinato.

Por fim, vale mencionar também o contraste entre a forma que Šahrāzād encontrou de resistir a Šāhriyār e a forma como o sábio encontrou de punir o rei. Šahrāzād usa todo o repertório de histórias dela mesmo estando diante da morte; Šahrāzād usa a palavra para escapar de uma série de assassinatos. O sábio se recusa a contar qualquer história quando ameaçado. Mas mata o rei com veneno.

Daria para continuar pontuando essas diferenças e aproximações por páginas e mais páginas. É uma tarefa para a vida inteira. Basta mencionar que, somente na história do pescador, se encaixam (além da história do rei e do sábio!) as histórias do mercador e do papagaio, do filho do rei e da ogra, do rei das ilhas negras e suas esposas. Todas elas vão ter algum eco na história do pescador e tudo vai se resolver no final, ainda que o pescador vá ficando em segundo plano de certa forma. E o conto do pescador tem eco na história de Šahrāzād, que vai ganhando sobrevivendo de noite em noite, de história em história. A narrativa se redimensiona e ressignifica na medida em que as histórias espelham tanto histórias anteriores quanto a história de Šahrāzād.

Borges e as Noites

A conferência de Borges que eu mencionei no início do texto foi dada em 1977, em Buenos Aires. Ela depois foi incluída em um livro junto com outras conferências, que levou o nome As sete noites. Junto com conferências temáticas sobre o pesadelo, o budismo, a poesia, está a conferência sobre O livro das mil e uma noites. Eu queria discutir algumas das afirmações de Borges aqui nessa resenha junto com uma visão sobre o conto O livro de areia.

Borges defende que o título de mil e uma noites é o mais bonito do mundo. Mil é quase sinônimo de infinito. Dizer mil noites é dizer infinitas noites, muitas noites, inumeráveis noites. Dizer mil noites é adicionar uma ao infinito. Para o autor argentino, a ideia do infinito é indissociável do Livro das mil e uma noites.

Depois de dizer isso, Borges faz um passeio pelas traduções das Noites em diversas línguas. Ele faz a constatação de que as traduções inglesas são substancialmente diferentes entre eles, que por sua vez são diferentes de cada uma das edições francesas; por sua vez, as traduções que temos no Brasil evidentemente são diferentes entre elas. O livro não tem uma versão sedimentada.

A sugestão de um livro infinito do título é muito importante porque, virtualmente, As noites são infinitas. Ninguém pode ler As noites até o final porque são infinitas noites. Borges diz que tem em casa os dezessete volumes da tradução inglesa de Burton. E que nunca leu todos os volumes mas que sabe que Noites estarão lá esperando. É nisso que está essa espécie do livro para ele.

O livro da areia do conto de Borges também é um livro infinito. No conto, um vendedor de bíblias aparece para oferecer uma edição para um morador qualquer de Buenos Aires (que tem algumas coincidências biográficas com Boges). Esse vendedor diz que conseguiu trocar esse livro por uma bíblia em algum lugar do Oriente. O narrador não consegue encontrar nem a primeira nem a última página desse livro.

Penso que esse livro é um duplo das Noites dentro da obra de Borges. Esse livro de areia é chamado assim porque é um livro que tem tantas páginas quanto tem de areia no deserto. É de se pensar que o número de areia do deserto não é infinito, bem como não são as edições das Noites. Mas, virtualmente, são de um número impossível de ser apreendido.

Aliás, são algumas as pistas sobre as Noites ao longo do conto. A mais gritante dela é que o livro de areia vai para perto da tradução inglesa do livro na estante. É muito claro que essa proximidade não é por acaso. Existe uma relação muito clara entre os dois. Óbvio que uma edição qualquer das Noites não vai ter páginas que mudam de lugar e se transmutam a cada leitura. Mas é um livro que, como Borges relatou, não vai se esgotar; as histórias não vão chegar ao fim.

Borges termina a conferência constatando que as Noites continuam se recriando. É quando ele diz que o livro faz parte prévia da nossa memória. E eu repito o que eu falei no início: as Noites nos antecedem porque o livro foi concebido com histórias que já faziam parte de um imaginário comum; esse imaginário comum é transfigurado por Šahrāzād num contexto onde conhecer as histórias significa continuar vivo. Para mim, e imagino que para qualquer leitor, ler as Noites significa encontrar (ou reencontrar) o desejo de ouvir histórias, de compreender o mundo por meio da imaginação.

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Na resenha do quinto volume, pretendo fazer uma compilação de tudo o que li e vi sobre as Noites. Por enquanto, deixo a recomendação de dois vídeos em que o Mamede Mustafa Jarouche Fala sobre o livro. O primeiro é uma palestra dada na UFRJ sobre narrativas árabes e as Noites. O segundo é uma entrevista dada na época do lançamento do quinto volume do livro.

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