O livro dos mortos, de Lourenço Mutarelli | Resenha

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Capa de O livro dos mortos na edição da Companhia das Letras, publicada em 2022
Capa de O livro dos mortos na edição da Companhia das Letras, publicada em 2022

A melhor maneira de iniciar qualquer comentário que seja sobre O livro dos mortos é pelo título e subtítulo do livro. O livro dos mortos é também o título de um tipo de conjunto de feitiços mágicos do Egito Antigo que tinham o objetivo de guiar os mortos no submundo. Uma autobiografia hipnagógica faz referência a duas coisas: primeiro, ao limiar que existe na fronteira entre autor e personagem na obra; segundo, ao estado entre a vigília e o sono que o livro pretende se situar.

Essa informação sobre o significado da palavra “hipnagógico” está nas notas de rodapé do livro, assim como a menção do título do livro fazer referência a algo relacionado ao Egito Antigo. A leitura das notinhas de rodapé muda completamente a experiência da leitura. Elas trazem às vezes explicações, às vezes divagações, às vezes comentários sem muita relação aparente com o que está acontecendo na trama.

Dos experimentos que o livro propõe, o que eu gostei mais foram das centenas de notas de rodapé são o que funciona melhor. Digo experimentos no sentido de trazer coisas que não são tão comuns em romances tradicionais; o próprio Lourenço Mutarelli diz em uma entrevista que o livro nasceu de um processo de experimentação quase acidental. Existem muitos outros experimentos, para além dessa profusão de notinhas. Eu quero destacar dos deles: esse entre-lugar entre a vigília e o sono e a questão da autoria.

Entender que o livro se situa nesse entre-lugar entre a vigília e o sono ajuda a entender boa parte do livro. Por exemplo, que não existe trama propriamente dita: Pompeu está apenas meio acordado, meio consciente; não existe condições de uma trama se desenvolver nesse estado. Antes disso, o que existe é uma série onírica de coisas que se repetem.

Os sonhos de Pompeu parecem refletir de forma distorcida sua rotina. As pessoas que conversam com ele; os muitos duplos que existem dele mesmo ao longo as páginas. As figuras que se repetem: o amigo que sempre se ele gosta de café, o homenzinho que aparece na rua, o ato repentino de dar ou receber dinheiro, visitas repentinas, risos despropositados fora de lugar. A própria relação com o pai e com a mãe. Aliás, isso interfere na relação dele com o espaço; todas as ruas tem o nome de sua mãe.

Nas notas, Mutarelli fiz que foi ele mesmo quem viveu alguns dos episódios com os pais; não Pompeu. Essa é só uma das rupturas que existem ao longo do livro que trata da fronteira dele com Pompeu. Ao longo da história, Pompeu faz menção algumas vezes de levar o livro para um inscritor (que eu presumo que seja Mutarelli).

Mas existem outras intromissões do autor. Por exemplo, ele revela que foi ele mesmo quem viveu um episódio que Pompeu relata da relação com o pai. Em outro momento, Mutarelli diz que são dele resultados de um exame cardíaco que Pompeu fez. Parece não existir diferença clara entre Pompeu e Mutarelli, entre personagem e autor.

Eu recomendo a leitura do livro para quem quer conhecer todos os experimentos mais que existem ao longo da narrativa. O livro dos mortos é muito original. Vale a pena conhecer essa obra do Mutarelli.

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Indico essa entrevista com o Lourenço Mutarelli sobre o livro. Nela, ele conta sobre o processo de composição da obra; por exemplo, só para citar elementos abordados durante a resenha, sobre o experimentalismo do livro e a dimensão onírica da obra. É uma entrevista curtinha em que ele toca em pontos importantes desse processo de composição.

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