O visconde partido ao meio, de Italo Calvino | Resenha

capa de o visconde partido ao meio publicado pela Companhia das Letras em 2011

O visconde partido ao meio é o segundo livro do Italo Calvino que eu trago para o blog. Eu já tinha mencionado na resenha de Palomar que um dos elementos que ele considerava mais importantes para os romances modernos era a aventura. Na entrevista que ele deu essa declaração, ao New York Times, ele disse que não existia romance de aventura de romance na Itália. Calvino definia que a aventura era a “prova racional do homem diante de coisas contrárias a ele” e que os romances italianos em que a aventura assumia um papel central eram repletos de irracionalismos.

Ele diz que se soubesse escrever um romance de aventura, escreveria; mas afirma que não sabia. Eu discordo dele. Acho que dá pra dizer que O visconde partido ao meio é um romance de aventura.

O livro se passa em algum lugar da Península Itálica, ainda na Idade Média. Numa guerra contra os turcos, um visconde italiano decide enfrentar de frente um canhão e recebe um tiro no meio. Os enfermeiros conseguem manter esse visconde vivo, mas partindo-o pela metade.

Era perceptível que o visconde era irresponsável e impulsivo mesmo antes de ir para a guerra. Quando decide enfrentar de frente um canhão, essa sensação se confirma. Mas surgem então dois personagens diferentes, já que dividiram ele ao meio. A partir da cirurgia que partiu o visconde surgiram a metade mesquinha e a metade boa. É essa a premissa do romance.

Depois que as duas partes se separam, cada um segue seu caminho; apenas mais próximo do final do livro existe um encontro consciente dos dois. Para mim, o mais interessante do livro é a jornada que essas duas metades enfrentam estando separadas. A personalidade dessas duas metades é oposta, uma é boa e a outra é mesquinha. De certo modo, elas enfrentam a própria incompletude.

Para a população do feudo em que vivem, as duas metades são insuportáveis. A opinião de uma metade em relação à outra também é quase sempre de indiferença; a metade boa rejeita a metade mesquinha e vice-versa. Nenhuma quer aniquilar ou entender a outra. Apesar disso, em dado momento, a metade boa diz que sofre porque a mesquinha é mesquinha (o que é esperado de um personagem comicamente bom).

Essa cisão estabelece de um jeito engraçado que o visconde italiano tinha uma personalidade complexa. E isso é relevante quando a gente pensa que esse visconde é um personagem medieval. Quando se recorda que a Europa Medieval é e geral associada a uma estabilidade que não existe no romance de Calvino.

Outro elemento importante do romance é construir a personalidade do visconde a partir do humor. O riso na Idade Média era condenado pelos grandes teólogos da Igreja Católica; o próprio Santo Agostinho tem texto afirmando que o choro era preferível à risada. O livro construir a oposição das duas personalidades a partir do humor ganha outra dimensão, ganha tamanho de transgressão mesmo.

Eu recomendo a leitura desse romance de Calvino. Na verdade, enquanto escrevia essa resenha passei a gostar ainda mais do livro. Para mim, é inegável que o romance é a aventura de duas metades insuficientes tentando se encontrar depois de uma grande irresponsabilidade. E são divertidíssimas as transgressões de Italo Calvino em relação ao que era a estabilidade da vida na Idade Média.

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A entrevista ao New York Times que eu mencionei está no livro Mundo escrito e não escrito, publicado pela Companhia das Letras.

A resenha de Palomar, outro livro de Calvino publicado no blog, está disponível aqui.

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