Palomar, de Italo Calvino | resenha

Palomar é o nome de um personagem que Italo Calvino criou para descrever cenas do cotidiano que ele considerava interessantes, num primeiro momento essas cenas foram publicadas no jornal Corriere della Sera. Em 1983, o autor reúne algumas dessas observações nesse livro que tem o nome do personagem. Os 27 capítulos do livro têm três grandes seções: as férias de Palomar, Palomar na cidade e os silêncios de Palomar.
Esses capítulos trazem justamente as observações do personagem sobre o cotidiano — as considerações dele sobre uma onda, sobre o jardim da casa dele, sobre o zoológico, sobre uma vitrine de queijos.
E as considerações do personagem são interessantíssimas. Veja que um dos elementos que o próprio Calvino considerava imprescindível na literatura dele era a aventura. As observações de Palomar, de certo modo, são aventuras. São porque em todos os capítulos revelam o desejo desejo de fazer algo, mesmo que esse algo seja o desejo de seguir vivo. Apesar de se tratar quase sempre de temas cotidianos, são observações que se relacionam quase sempre com ações, já que são com essas observações que Palomar age.
Porque essa aventura está intimamente ligada a seguir vivo mesmo. Palomar se mantém vivo enquanto atravessa esses episódios, enquanto os nomeia, os classifica e dá sentido para as coisas.
Um dos questionamentos mais naturais durante a leitura do livro é a da fronteira da autoria do livro: até onde vai Calvino e em que ponto começa Palomar enquanto personagem. O autor já assumiu em entrevistas que criou o personagem para poder comentar situações do cotidiano. Penso que essa necessidade de observação que dá a personalidade dele e que configura o livro como sendo do próprio Palomar. O que conduz as aventuras é justamente esse olhar do personagem.
Um dos resultados dessas observações de Palomar é a captura do mundo. Ele tenta resgatar a experiência dele, tenta recuperar o que ele viveu através dessas observações. E faz isso com as consciência de que qualquer observação que ele faça é insuficiente para resgatar essa experiência na totalidade dela – assim como nenhuma memória apreende episódio algum na totalidade dele, como memórias são sempre distorções. Mas, ao mesmo tempo que é insuficiente, é a única forma que Palomar tem de capturar o mundo que ele vive.
Aliás, é nessas capturas que a gente percebe como Palomar está deslocado. Palomar parece não fazer parte do mundo, parece não pertencer a lugar algum. Quando digo lugar, posso dizer tanto geograficamente quanto ideologicamente. A única coisa que Palomar parece ter é a própria subjetividade; ele parece só pertencer a essa subjetividade, que imagino que ele próprio não saberia definir.
O alheamento que vem junto com essa falta de pertencimento talvez seja o ponto principal do livro. Mesmo observando, Palomar está alheio das coisas. Ele parece estar alheio do tempo e dos lugares em que narra o livro e nada dá a entender que alguma vez ele pertenceu a algo.
A leitura é muito recomendada. E vale a pena ler Palomar procurando esses sinais de alheamento que ele dá ao longo das histórias. É interessante, também, ler procurando as pistas que Palomar dá sobre essas observações tão cotidianas serem aventuras. Se percebe, com isso, que Calvino é um dos poucos que escreveria aventuras assim.
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Recomendo duas produções acadêmicas sobre o romance. A primeira é a tese de Deyse Silva, que analisa o romance a partir de critérios que o próprio Calvino indicou em outras obras dele. A segunda é a dissertação de Isabel Silva, que discute com profundidade o estranhamento no romance de Calvino.