Vidas Secas, de Graciliano Ramos | resenha

Entre as muitas leituras de Vidas Secas, a que eu gosto mais é a que João Cabral de Melo Neto fez em um poema sobre a obra de Graciliano Ramos.¹
João Cabral disse que Graciliano escreve “com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol”. Que o livro tem paisagem que reduz tudo ao osso. Que fala para “quem padece de sono de morto”. Para quem precisa do sol que “bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos” para acordar.
Não existe síntese melhor de Vidas Secas. E não digo síntese fazendo referência ao enredo. Digo porque com esse poema de Cabral captura o que tem de mais substancial no livro de Graciliano.
Vidas Secas tem léxico e sintaxe interessantíssimos. Léxico do pouco. E sintaxe que organiza esse pouco de jeito que parece menos ainda. O próprio narrador, que não participa, dá episódios descontínuos da família. Quando o pouco vai para a voz dos personagens ele fica mais significativo ainda.
Fabiano não sabe se expressar. Dá pra pensar sobre essa incapacidade por dois caminhos. A primeira, do ponto de vista subjetivo do personagem em si. Se não consegue se expressar, Fabiano tem uma relação muito precária com o mundo. A relação dele com a mulher e com os dois filhos é limitada justamente porque ele não tem vocabulário para alentar uma conexão com qualquer um deles. O outro caminho diz respeito ao social. Fabiano é marginalizado devido a essa falta de vocabulário numa série de situações – essas são mais explícitas e fáceis de ver no livro. O episódio de Fabiano se sentido enganado pelo patrão por não saber o que são juros é muito claro.
O ambiente que a família vive também é definidor do livro. Eu li livro pela primeira vez quando tinha 14 anos e nunca esqueci da primeira descrição do sertão – do chão alaranjado de pontinhos brancos que são carcaças de animais. Arrisco dizer que eu nunca vi um ambiente tão hostil em qualquer outra leitura que eu tenha feito.
Essa hostilidade do sertão influencia todo o comportamento dos personagens durante o livro. O romance é cíclico porque não existe nesse lugar onde eles teriam qualquer estabilidade. Não existe perspectiva de posse de qualquer tipo de terra. Quando trabalham na fazenda dos outros, a família está condenada ou pela impossibilidade de abundância material em lugar tão infértil ou pelas enchentes que acontecem quando chove. É significativo que o maior sonho de sinha Vitória seja ter uma cama de couro. E é relevante também ver como os filhos se relacionam com essa realidade. O desejo é de “ser homem” igual Fabiano. Fabiano ele mesmo, ao contrário, nem homem se considera.
Apesar desse ambiente claramente influenciar nas condições de existência da família, é importante pontuar que essa relação não é determinista. Não existe nada no texto que dê a entender que porque essa família vive no sertão ela é miserável e que todas as outras pessoas que vivem lá também são. Parece antes existir um retrato de uma estrutura social que é comum a todas as pessoas de todos os lugares. Não é porque não está num grande centro que Fabiano é imune a uma relação de poder desigual com o patrão. Não é porque está distante de ter voz política que deixa de se revoltar mesmo que intimamente com uma injustiça cometida pelo estado.
E aí voltamos para o poema de João Cabral. Vidas Secas “bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos”. E faz isso com o pouco, porque consegue condensar nessa descontinuidade de episódios uma realidade que é universal.
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1. Esse poema se chama Graciliano Ramos: e foi publicado no livro Serial. Outro texto interessante sobre Vidas Secas, mas que eu não citei no texto, é o de Antônio Candido (disponível aqui).